 |
Turma de indígenas recém-formados em Autazes. Fotos: Divulgação/Diário do Amazonas |
Manaus - O
município de Autazes (a 118 quilômetros de Manaus) acaba de ganhar a
primeira turma indígena formada em nível Superior. Os 52 professores da etnia
Mura, oriundos de diversas aldeias do município, se graduaram em licenciaturas
para Letras e Artes, Ciências Humanas e Sociais e Ciências Exatas e Biológicas
em um curso que uniu a sabedoria milenar dos indígenas e o conhecimento
científico do homem branco.
A iniciativa partiu do próprio
povo Mura que, após concluir o curso de Magistério Indígena da Secretaria de
Estado de Educação do Amazonas (Seduc), fez a proposta de obter o nível
Superior para a Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
“O magistério só dava condições para trabalhar até a 4ª série do (ensino)
Fundamental e estávamos preocupados com a formação de nossos professores e
crianças. Quando fizemos a proposta para a Ufam não havia nenhum curso voltado
para os indígenas. Fomos o primeiros a demandar este curso específico”, disse
Mariomar Moreira de Souza, 43 anos, professor da aldeia Trincheira.
O curso, criado em 2007 e implementado em 2008, é realizado pela Faculdade de
Educação (Faced) e foi denominado Licenciatura Específica para a Formação de
Professores Indígenas Mura. Desde o início, a formação propôs uma educação
diferenciada, com uma metodologia que respeitasse e abordasse a cultura dos
Mura, fazendo do índio o próprio pesquisador de seu ambiente.
Após cinco anos de formação, Mariomar e os 51 indígenas concluíram seus cursos
neste mês e voltarão para as escolas de suas aldeias levando o conhecimento
adquirido por meio da universidade. No total, serão beneficiadas dez aldeias
com mais de 2.700 habitantes ao redor do município de Autazes.
Ao todo, foram 23 trabalhos de conclusão apresentados em uma fazenda no Ramal
dos Padres, km 22 da BR-174, onde o grupo ficou hospedado para finalizar a
última parte do curso no mês de abril.
Na área de Biológicas, o grupo de Mariomar se destacou com uma pesquisa sobre a
caça na região da aldeia Trincheira. Devido ao aumento populacional e a perda
de práticas para o cultivo da floresta, certas espécies de animais estão
desaparecendo na região, o que motivou o grupo a pesquisar sobre o fato.

Orientados pelo professor e
mestre em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia pela Ufam,
Washington Mendonça, a equipe fez um levantamento de dez meses, no decorrer de
2011, sobre os animais abatidos na região.
“O objetivo era chamar a atenção do nosso povo para o que a caça predatória
pode fazer com a fauna e flora de nosso ambiente. Não queremos denunciar a
prática da caça, mas, torná-la sustentável”, disse Mariomar.
Durante a pesquisa, alunos do 4º ao 9º ano do Ensino Fundamental das escolas de
Trincheira ajudaram na coleta de dados e nas entrevistas com os caçadores. Foi
descoberto que animais como a paca, o tatu e a cutia são os mais abatidos e não
estão chegando à fase de reprodução. Outro ponto crucial constatado foi o
desaparecimento de espécies de grande porte, como a Anta.
“Além de conscientizarem o povo sobre a caça, o grupo ainda fez uma coleção
zoológica aproveitando os crânios, penas e bicos dos animais caçados para usar
em sala de aula”, explicou o professor Washington.
Em Ciências Exatas, quatro trabalhos foram produzidos com foco no ensino da
Matemática. O orientador Gerson Bacury, graduado em Matemática e mestre em
Educação pela Ufam, ajudou os professores indígenas a criarem métodos de ensino
por meio de jogos e uso de material concreto para crianças do Ensino
Fundamental.
“Utilizamos a metodologia do ensino no contexto indígena. Os materiais
concretos que eles utilizaram vinham do próprio ambiente da aldeia, como
tampinhas de garrafas pet ou sementes de tucumã. Os jogos também foram
confeccionados na própria aldeia. Isso é um trabalho único na área”, destacou o
professor.
O grupo do indígena Rosemberg Corrêa, 35, verificou que os alunos do Ensino Fundamental
da aldeia São Félix tinham dificuldade nas operações de multiplicação. Para
facilitar a aprendizagem o grupo criou o jogo de cartas chamado ‘Advinha a
multiplicação’.
O jogo consiste em dois jogadores e um mediador. O mediador sabe o resultado da
multiplicação das duas cartas. Para ganhar, a criança deve responder qual é o
número da carta antes do adversário. “Percebemos que eles ficaram muito
satisfeitos e pararam de faltar aula. Agora, pretendemos aplicar os jogos em
todas as outras disciplinas”, contou Rosemberg.
As dificuldades no aprendizado dos cálculos também foi tema do projeto de
Bernardo de Santos Soares, 40, e Luís de Souza Matos, 32, da aldeia Josefa.
Para isso eles utilizaram o material concreto como forma de ensinar matemática
efetivamente, “Vimos que muitos sabem matemática porque decoram a tabuada e não
porque conhecem os cálculos. Com esse método de usar as sementes de tucumã ou
as tampinhas eles aprendem o que são dezenas e centenas. Agora, esperamos mudar
o paradigma de aprendizado de nossas crianças indígenas”, declarou Bernardo.
Dicionários documentaram
o saber dos povos indígenas
O curso de Licenciatura da etnia
Mura se encerra hoje e deixa um legado para os indígenas: o registro de seus
conhecimentos milenares.
Na área de Letras foram
produzidos nove dicionários que documentam os saberes do povo em diversas
áreas, como as variedades de plantas e árvores, espécies de peixes e receitas
medicinais.
“Os índios têm uma cultura de passar o conhecimento por meio da oralidade. A
partir do momento que se tem escola é possível registrar esse conhecimento”,
disse a professora Cristina de Cássia Borella, mestre em Linguística pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que orientou os alunos na
conclusão dos trabalhos.
“A coleta de dados foi feita por meio de entrevistas com os mais idosos da
aldeia. Foi observado que muitas das espécies de peixes e árvores da região
estavam desaparecendo, e, com os dicionários, podemos agregar valor ao
conhecimento que eles já tinham e garantir que seja passado a outras gerações”,
explicou a professora Cristina.
Atualmente, o curso de licenciatura, que antes era direcionado aos Mura, agora
abrange mais duas etnias e passou a se chamar Licenciatura Específica para
Formação de Professores Indígenas. Em 2011, os Munduruku e os Saterê-Mawé
iniciaram seus cursos e no final deste mês terão aulas dentro do novo Centro de
Formação de Professores Indígenas, na Fazenda Universitária da Ufam, localizada
no km 39 da BR 174.
O professor Washington Mendonça afirmou que isso é um marco na história, tanto
para os indígenas como para a universidade. “O índio agora faz o trabalho que o
pesquisador saía de Manaus para fazer. É algo incrível, pois, ele não só ajuda
a sua aldeia com o conhecimento como também o registra em níveis acadêmicos.
Isso nunca foi feito antes e vai trazer muitos frutos”, ressaltou o professor.
Fonte: Diário do Amazonas