O álcool é acessível aos índios tanto nas cidades, quanto nas aldeias do interior do Estado
Larissa Balieiro - portalamazonia@redeamazonica.com.br
MANAUS – O consumo de bebidas alcoólicas entre índios de diversas etnias provoca o aumento da criminalidade e muda as relações sociais em aldeias indígenas do Estado. A constatação preocupa as entidades e órgãos públicos e favorece a adoção de medidas de prevenção contra a incidência do vício. Algumas áreas do Alto Solimões e aldeias localizadas em municípios de São Gabriel da Cachoeira e Maués, por exemplo, recebem acompanhamento sociopsicológico para inibir os casos.
A ingestão de bebidas fermentadas como o Caxiri, Caiçuma e Pajuaru já é uma prática cultural comum nas aldeias e comunidades indígenas urbanas na realização de celebrações ou rituais. Frutas como macaxeira e cará são usadas como matéria-prima na fabricação.
Segundo a coordenadora de pesquisas em sociodiversidade da Secretaria de Estado para os Povos Indígenas (Seind), Chris Lopes, o consumo das bebidas serve para fortalecer relações socioculturais, mas atualmente a análise desta prática revela outra realidade.
As bebidas típicas têm sido substituídas ou incrementadas para serem consumidas no dia-a-dia e em outras ocasiões, como em festas de comunidades próximas às aldeias. O álcool em excesso acaba por alterar a rotina, a cultura e o estilo de vida dos índios.
Segundo a coordenadora da Seind, as consequências do aumento no consumo de álcool são cada vez mais evidentes. “Hoje, é muito frequente nas Casas de Saúde do Índio encontrar indígenas fazendo tratamento de doenças ligadas ao uso abusivo de álcool como cirrose hepática, hipertensão e diabetes”, afirmou.
O álcool é acessível aos índios tanto nas cidades quanto nas aldeias, apesar da proibição na venda de bebidas alcoólicas para o grupo prevista na Lei Federal 6.001/73. “Embora a venda de bebida alcoólica seja proibida por lei aos indígenas, ela vem se intensificando no dia-a-dia das aldeias”, acrescenta.
O artigo 58 desta lei proíbe a comercialização e distribuição de bebidas alcoólicas aos indígenas. A pena para o crime varia de seis meses a dois anos de prisão. Apesar de os comerciantes ignorarem a determinação, até hoje segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), ninguém foi preso pelo crime no Estado.
Estudo recente da Seind na área que abrange o entorno do rio Marau, no município de Maués, mostra que entre os motivos encontrados na facilidade de contato dos indígenas com o álcool, está a fragilidade de fiscalização realizada pela Funai nas terras indígenas. “A fiscalização nas terras e comunidades indígenas é ineficiente”, afirma Lopes. Outra agravante é a estreitamento das relações do grupo com as comunidades urbanas. “O período de maior consumo em Maués é o inicio e o final de cada mês, quando os professores e aposentados vão receber e fazer suas compras na cidade. Como nesse período eles podem comprar a bebida e ninguém fiscaliza, acabam comprando e levando pra aldeia também”.
De acordo com um estudo da Secretaria Nacional Anti Drogas, a bebida mais consumida entre os indígenas é a cerveja seguida da cachaça. “Nas aldeias que temos trabalhado é muito frequente a opção pela cachaça por ser mais barata e poder ser consumida na forma natural”. Outra preocupação é conhecer outras formas de entrada de álcool nas aldeias. “O problema se agravou tanto que em algumas aldeias os indígenas misturam no suco o álcool comum e, em outras, há relatos de consumo de gasolina”, lembrou a coordenadora de pesquisas da Seind, Chris Lopes.
Índios criam estratégias para coibir violência
A bebida provoca aumento da violência nas aldeias. O consumo excessivo do álcool pode acarretar brigas internas, acidentes e até problemas psicológicos. Algumas comunidades indígenas preferem intervir para evitar as ocorrências, como acontece na região do Alto Solimões, na fronteira entre Brasil e Peru, onde os índios da etnia Ticuna instituíram uma organização policial para coibir infrações dentro das aldeias – abuso de álcool, envolvimento com o narcotráfico e casos diversos. A alternativa encontrada pelos índios foi a criação da Polícia Indígena do Alto Solimões (Piasol).
Apesar da experiência em tentar coibir crimes, a Superintendência da Polícia Federal no Amazonas (PF/AM) identifica a entidade como uma milícia indígena e já investiga possíveis abusos de violência, invasão a residências, prisões ilegais, tortura e até homicídios praticados pelo grupo.
Para Chris Lopes, o problema da criminalidade é ainda mais complexo e depende não apenas da comunidade, mas de um conjunto de ações. Segundo ela, é preciso estender a responsabilidade aos municípios para o desenvolvimento de ações locais de enfrentamento do alcoolismo junto aos grupos indígenas.“É na cidade que o consumo de álcool é facilitado e é para a cidade que se leva muitos dos casos que ocorrem em conseqüência do abuso de álcool como violência e os crimes”, disse.
Para tentar resolver o problema, a Seind está em fase de implementação de um sub-programa de atenção e prevenção ao uso de álcool e outras drogas, para atender 64 povos indígenas no Amazonas. A ação conta com o apoio das comunidades indígenas, do Conselho Estadual de Politicas sobre Drogas, Casas de Saúde do Indío, Funai, DSEIs e das secretarias municipais de Educação, Saúde e Assistência Social.
Grupo reconhece problema nas comunidades
Os líderes indígenas Geraldo Farias (Shimauara) e Messias Martins (Shasiski) das comunidades Apurinã e Cocama respectivamente ressaltaram a problemática de álcool nas aldeias. “Este problema existe em todas as aldeias praticamente. O próprio grupo vai até a cidade e compra nos comércios, só que os comerciantes não sabem que estão cometendo um crime ao vender bebida alcoólica ao índio”, frisou Shasiski.
Já o líder dos Apurinã afirmou não registrar casos de alcoolismo na comunidade localizada no bairro Val Paraíso, zona Leste de Manaus. “Somos 30 pessoas, todas são religiosas. Consumimos apenas as bebidas comuns dos indígenas como as fermentadas, mas sabemos que isso acontece nas outras comunidades”, disse.
Segundo o técnico da Fundação Nacional do Índio em Manaus (Funai), João Melo, a maior incidência de álcool e até drogas acontece na comunidade e aldeias dos índios Ticuna. “Temos essa certeza porque a comunidade Ticuna é a maior população indígena do Brasil. Alguns vivem na zona Leste de Manaus e os demais moram em comunidades no Alto e Médio Solimões”, comentou.
O técnico da Funai confirma ser a bebida alcoólica industrializada a responsável pelo crescimento da violência nas aldeias. “Acontece que os índios enquanto sóbrios tem algum tipo de desentendimento com os próprios companheiros de aldeia. Eles preferem não brigar naquele momento, então a bebida alcoólica é usada para encorajar o índio a ir brigar com o companheiro de comunidade bêbado. Sob poder da bebida alcoólica é que acontece as trocas de farpas e brigas, que às vezes acarretam até em terçadadas. Eles ficam fora de si, revoltados. É comum alguns índios terem marcas pelo corpo, advindas de facadas, terçadadas e pauladas”, afirmou.
Em novembro do ano passado, durante uma ação de fiscalização no interior do Amazonas, os agentes da Funai identificaram registro de delitos envolvendo índios para obter bebida alcoólica. ”Há registros de indígenas que roubaram álcool dos hospitais, emergiam o líquido no algodão e tomavam. Outros começaram a tomar desodorante e até leite de colônia, por conterem quantidade de álcool”, alegou Melo.
Para tentar mudar esta realidade, a Funai estuda medidas de conscientização de jovens índios. “Vamos trabalhar com os jovens. Conscientizar dos males da bebida alcoólica. Não temos como fiscalizar aquilo que já está na comunidade”, concluiu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário